sexta-feira, agosto 17, 2007

Putin e o renascimento da Rússia como superpotência global e novas alianças estratégicas


Enquanto o mundo ocidental anda entretido e distraído com o tumor maligno que corrói as entranhas do sistema financeiro global, provocado pela crise dos mercados de derivativos de crédito, o Presidente russo Vladimir Putin, antes de abandonar o cargo, em 2008, mostra um profundo empenhamento em deixar como herança ao seu sucessor, uma nova Rússia: rica, armada até aos dentes e poderosa para fazer frente a quaisquer ameaças externas.

Qual Fénix, renascida das cinzas, a Rússia de Putin volta a ser uma superpotência global com uma agenda geopolítica própria e um renovado e sofisticado complexo industrial-militar para pôr em sentido os EUA e a NATO.


1. Retoma das acções militares estratégicas do Pólo Norte ao Oceano Pacífico, da Europa ao Sul do continente africano.

O presidente russo, Vladimir Putin, anunciou hoje (17/08) a decisão de retomar de forma "permanente" os voos estratégicos russos a zonas patrulhadas pelos Estados Unidos e pela NATO, suspensos desde 1992. "Decidi retomar os voos da aviação estratégica russa de forma permanente", revelou Putin às agências de notícias russas em Tcheliabinsk, numa base militar situada nos Urais.O presidente informou que, horas antes, 14 bombardeiros, aviões de escolta e aviões-tanque descolaram de vários pontos do país para "patrulhar" os céus dos Oceanos Atlântico e Pacífico, do Mar Negro e do Pólo Norte devendo, em apenas um dia, cumprir missões de 400 horas de voo. As aeronaves, equipadas com armas nucleares, têm um raio de acção superior a 10.000 km. "Esperamos que nossos parceiros [do Ocidente] mostrem compreensão perante o reinício dos vôos da aviação estratégica russa. (...) essas operações serão realizadas [a partir de hoje] de maneira regular e terão um carácter estratégico", enfatizou o presidente russo.

Dezenas de bombardeiros russos começaram patrulhas de longo curso no início do mês e sobrevoaram instalações militares americanas em locais que já não visitavam desde 1992, com destaque para a base de Guam, no Pacífico Ocidental, revelaram a agência RIA Novosti e o jornal Pravda, em despachos emanados de Moscovo. Fontes militares russas, citadas por ambos, informaram que a aviação russa foi seguida e vigiada por caças da NATO.

A retoma dos voos regulares de bombardeiros estratégicos russos é interpretada por alguns media moscovitas como uma demonstração da determinação de Putin de recuperar a presença permanente da aviação russa no Atlântico, no Pacífico e no Ártico. Mais cautelosos, os especialistas russos em questões militares, sublinharam repetidamente que as novas decisões geopolíticas e militares do Kremlin nada têm a ver com um recuo aos tempos da guerra fria, nem significam a escalada de tensões militares com os EUA e a Europa, corporizadas na NATO.

No mesmo sentido se manifestou Vladimir Putin, hoje, quando participou com os seus homólogos da China e da Ásia Central, no último dia dos exercícios militares antiterroristas da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), os maiores realizados até agora por este bloco geoestratégico emergente, fundado em 2001, por iniciativa de Pequim e de Moscovo. O presidente recordou que os voos estratégicos da Força Aérea russa foram "unilateralmente" suspensos em 1992, por Moscovo, lamentando que tal decisão não tenha sido seguida por outros países. "Isso criou problemas adicionais para a segurança da Rússia" - disse Putin. "Por isso - continuou - tomámos agora a decisão de reactivar as missões da nossa aviação estratégica", esclarecendo que se enquadram no treino e formação das respectivas tripulações.

Porém, já no princípio do mês, o comandante da armada russa, almirante Vladimir Massorin, havia anunciado também que acções da "Marinha de Guerra da Rússia, no Mediterrâneo devem ser restabelecidas de forma permanente" negando igualmente que tais actividades estejam programadas para igualar os níveis verificados antes do desmembramento da URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - em 1991.

Estas decisões estão sintonizadas com a acelerada modernização das infra-estruturas do complexo industrial-militar russo e são realizadas através da apresentação de um sofisticado arsenal militar táctico e estratégico, envolvendo novas gerações de caças e bombardeiros, submarinos nucleares e sistemas antimíssil. Neste processo, a componente estratégica da Força Aérea russa vai brevemente ser equipada com o primeiro avião supersónico modelo Tu-160 (Black Jack, no jargão militar da NATO), preparado para carregar 12 mísseis cruzeiro, com ogivas nucleares ou convencionais, e cerca de 40 toneladas de bombas. O Tu-160 é o maior bombardeiro quadrimotor do mundo, com uma tripulação de apenas quatro especialistas, uma autonomia de vôo de 14.600 km, atingindo a altitude de 18.000 metros à velocidade de 2.230 km/h.

"Essa é uma decisão que eles tomaram; é interessante", afirmou o porta-voz do Departamento de Estado, Sean McCormack, em Washington, num curioso comentário ao anúncio do presidente Putin sobre o reinício daquelas missões após 15 anos de abstinência...


2. O programa de defesa antiaérea 2007-2015 e a nova dimensão dos interesses geoestratégicos russos


Recorde-se que há uma semana, Vladimir Putin, fez o anúncio do ambicioso programa estratégico de defesa antiaérea, durante uma visita à estação de radar Voronev, na periferia da sua cidade natal, São Petersburgo (ex-Leningrado) que deverá ser completado, o mais tardar, em 2015. O Presidente russo, certamente não por acaso, escolheu a sua terra para dar "o primeiro passo de um programa de defesa antiaérea que será posto em funcionamento antes de 2015. Isto [o radar ] é o que eu chamo de inovação das Forças Armadas. Muito mais barato, eficaz e fiável", disse. Voronev, situada na localidade de Lekhtushi, a 50 km de São Petersburgo, tem capacidade para vigiar e fiscalizar uma área que se estende do Pólo Norte até ao sul do continente africano. Em Armavir, encontra-se em fase de construção uma estação de radar idêntica, que expandirá ainda mais as capacidades geoestratégicas do "big brother" russo. Na ocasião, Putin criticou duramente os planos americanos de instalar uma estação de radar na República Checa e outra de intercepção de sinais de satélites-espiões dos EUA, na Polónia, interpretado pela Rússia não apenas como uma provocação mas antes como uma "ameaça directa" à segurança do "gigante gelado". Numa reacção contidamente irada , em Julho, o chefe do Kremlin, por decreto, suspendeu a aplicação do tratado sobre Forças Convencionais na Europa (CFE), até agora visto como o ex-libris dos arquitectos da segurança europeia. A firmeza da atitude russa surpreendeu alguns círculos políticos e militares europeus e americanos. Pelos vistos o golpe do judoca Putin atirou o adversário americano ao tapete.

Na semana passada, o secretário de Estado adjunto dos Estados Unidos, Daniel Fried, pela primeira vez, defendeu a ideia de um único escudo antimíssil na Europa, que integraria instalações americanas, russas e da NATO, segundo a agência EFE. "A melhor variante seria criar um só sistema coordenado e transparente a fim de reforçar a segurança de todas as partes", disse Fried à televisão do Azerbeijão, país que na altura visitava. George Bush e o vice-presidente americano, Dick Cheney, o falcão neoconservador, nunca aceitaram publicamente as ofertas russas para que os EUA, em lugar da instalação unilateral de bases próprias, contra o desejo de aliados importantes da NATO como a Alemanha, aceitassem a exploração conjunta daquele tipo de infra-estruturas por russos, europeus e americanos.

As declarações de Fried foram interpretadas por diversos observadores das relações americano-soviéticas como um recuo de Washington, que denota a incapacidade dos falcões americanos para a escalada de mais tensões militares, após as fracassadas e sangrentas aventuras no Afeganistão e no Iraque. O subsecretário americano revelou que o tema será abordado em profundidade no decorrer das próximas negociações EUA-Rússia, em Setembro, entre os ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa dos dois países.


3. Rússia, China e Irão: uma parceria geoestratégica que acentua o plano inclinado do Império anglo-americano


Na cimeira da SCO, em Bishkek, no Quirguistão, com as manobras militares conjuntas nos Urais, a Rússia, a China e o Irão consolidaram a sua estratégia de criação de uma frente unida para diminuir gradualmente a omnipotente e omnipresente influência global dos Estados Unidos, desde a queda do Muro de Berlim e da implosão do Império Soviético. A SCO foi criada em 2001 pela Rússia, China, Quirguistão, Cazaquistão, Uzbequistão e Tadjiquistão alegadamente para combater o terrorismo e o separatismo. Hoje é claro que se tratou, no estrito plano geoestratégico, de uma inteligente e preminotória manobra de Moscovo e de Pequim contra os riscos que despontavam nas suas zonas de influência. Um inimigo comum era na altura bem visível - o extremismo islâmico e a al Qaeda. Mas obviamente que a militarização da política mundial e o belicismo americano na ressaca do 11 de Setembro eram igualmente ameaças reais, a prazo, para os dois ex-adversários comunistas enfrentando fases diferentes mas aceleradas de reajustamento a modelos económicos internos de inspiração capitalista.

A administração Bush/Cheney, gulosa e ávida de domínio sobre os imensos e ineficientemente explorados recursos petrolíferos do Médio Oriente e da Eurásia, cometeu o erro de afrontar o Irão - velho aliado de Moscovo e de Pequim - com ameaças claras à sua soberania através de uma programada, mas até agora não executada, ocupação da velha raínha do Golfo - a Pérsia. Para justificar uma eventual agressão contra o estado xiíta, Washington catalogou-o como inimigo "do mundo civilizado" por, alegadamente, apoiar os terroristas da Jihad islâmica. Esta acusação é tão verdadeira quanto a existência de Armas de Destruição Maciça no Iraque...
Para além de não conseguirem suster os planos iranianos de desenvolvimento de infra-estruturas para a produção de energia nuclear (e eventualmente de armas atómicas), com tecnologia e matérias primas russas, os Estados Unidos acabaram por dar maior protagonismo regional ao "eixo do mal" iraniano. Para tanto muito contribuiu a fracassada guerra israelo-palestiniano-libanesa, do Verão passado. Apesar da amoral (re) destruição de um país - o Líbano - na tentativa de jugular a força militar do Hezbollah, a facção xiíta libanesa, apoiada financeira e militarmente por Teerão, o certo é que nem o Pentágono nem o exército israelita (apoiado na sombra pela Mossad) conseguiram atingir o anunciado objectivo militar.

O estreitamento das ligações do Irão à Rússia e à China, grande consumidora do crude iraniano, a partir de então, tornou-se inevitável e, até, natural. Assim, embora o Irão tenha apenas o estatuto de observador, a sua participação, através do presidente Mahmud Ahmadinejad, na cimeira de Bishkek, reforçou a SCO e acentuou a emergência de um contrapoder mais eficaz para aniquilar os desígnios americanos numa extensa região do planeta (Golfo Pérsico, Eurásia e Ásia-Pacífico).

Os seis países membros, obviamente, negam que a SCO seja uma aliança antiocidental. Mas é evidente que querem sacudir a influência americana dos seus territórios. Inteligentemente, Ahmadinejad usou a sensível questão do escudo antimíssil americano na Europa ocidental para a retratar como uma ameaça global que transborda a Rússia e as fronteiras do Velho Continente.

Os próprios políticos e militares americanos encarregaram-se de fornecer os argumentos que mais interessavam a Ahmadinejad, ao justificaram a decisão como uma "medida preventiva" para criar uma linha de defesa espacial contra uma eventual agressão do Irão. Para a Rússia as ameaças eram evidentes. Porém, para a China, geograficamente distante da controvérsia, era menos evidente. Habilmente, Ahmadinejad argumentou que os planos americanos eram uma "ameaça" para "toda a Ásia"."Este plano ultrapassa a ameaça contra apenas um país. Afecta a maior parte do continente, toda a Ásia", declarou o presidente iraniano preparando o caminho para que Pequim se sentisse igualmente como parte interessada na "prevenção e solução" do problema.

Por esta razão, as recém-terminadas conversações de Bishkek ganharam uma nova dimensão tendo como pano de fundo a expansão da influência da NATO e dos EUA na Eurásia, região estratégica para o abastecimento de petróleo e gás natural, parte dos quais, russos e chineses consideram ser seu património natural. "Em grande parte é a vontade de criar uma alternativa aos planos americanos de dominação", confirmou o professor de Ciências Políticas Alexandre Kniazev, citado pela agência France-Press.

A SCO pode negar justificadamente as suas intenções de criar uma frente antiocidental, mas os presidentes Vladimir Putin (Rússia) e Hu Jintao (China), de braço dado com Mahmud Ahmadinejad (Irão), estão claramente empenhados numa aliança estratégica anti-Washington, independentemente de quem ocupe a Casa Branca. Os interesses americanos são claramente contrários, senão mesmo inimigos, desta trindade euroasiática. A estratégia unilateral, belicista e predadora dos EUA semeou ventos. Agora colhe as tempestades.

Putin, durante uma deslocação à Alemanha, no início do ano, referiu-se aos EUA com a venenosa metáfora "o lobo come só, e não escuta ninguém". Agora em Bishkeh, retomou o registo: "Estamos convencidos que qualquer tentativa de resolver sozinho os problemas mundiais e regionais é inútil", sublinhou o Presidente russo, numa clara alusão ao bushviquismo americano.

Com o adequado significado, as manobras militares da SCO, em territórios russo e chinês, envolvendo 6.500 homens num exercício antiterrorista, são o sinal adequado às práticas geopolíticas anglo-americanas nos vários cenários geopolíticos onde operam, militar ou diplomaticamente. No Ocidente os exercícios foram interpretados como treinos para acções violentas de repressão contra manifestações étnicas ou civis na Eurásia. Tal impressão foi acentuada quando o jornal russo Kommersant, citando fontes militares, assegurou que as manobras tinham como modelo a violenta repressão da rebelião antigovernamental, em 2005, em Andijon (Uzbequistão). Os países da SCO, segundo os especialistas, não distinguem o combate ao terrorismo da repressão a distúrbios populares. O Pentágono, recorde-se foi obrigado, em 2005, a retirar a sua base militar do Uzbequistão após ter criticado a repressão de Andijon.

Cinicamente, a Rússia e a China descrevem a missão da SCO como um instrumento político-militar de estabilização do volátil clima geopolítico na região euroasiática, onde ambos querem repartir a hegemonia. Uma coisa é acolherem com aparente indiferença a presença das multinacionais americanas McDonald's, Starbucks e Kentucky Fried Chicken nas suas cosmopolitas cidades como Moscovo, São Petersburgo, Pequim ou Xangai. Outra, bem diferente, é terem como condóminos as gigantes e gulosas Halliburton, Bechtel, Chevron ou similares. Aí fia mais fino...